Estranhos Atratores

COVID-19 – Especulações sobre uma necropolítica – Fabio Müller

Quando o governo decide quem pode viver e quem deve morrer

Por Fabio Müller

Necropolítica: conceito desenvolvido pelo filósofo, historiador, teórico político e professor universitário camaronense Achille Mbembe que, em 2003, escreveu um ensaio onde pressupõe que a expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais. Exercitar a soberania é exercer o controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e a manifestação do poder. É a política da morte adaptada ao Estado.

Ao longo de 2019 foi notável o viés mortífero das propostas que emanavam de um governo recém eleito, que já exalava podridão: flexibilização do acesso às armas de fogo, liberação consecutiva do uso de uma porrada de agrotóxicos, afrouxamento da obrigatoriedade do uso das cadeirinhas de bebê nos veículos automotores, aumento do limite de pontos para se cassar uma CNH infratora, diminuição dos impostos sobre cigarros, menores investimentos em saúde e farmácias públicas, vácuo no programa Mais Médicos, enxugamento de benefícios sociais destinados a miseráveis, desempregados e idosos, abrandamento das fiscalizações e das leis de proteção ao trabalhador, e por aí vai…

Agora, diante de uma ameaça tão incisiva à saúde humana, personificada na figura de um novo vírus cuja capacidade de transmissão já o espalhou por todos os cantos do mundo, o mandatário deste governo nefasto segue mantendo a coerência das suas manifestações.

Por que alguém apostaria contra todas as evidências do que está acontecendo exatamente agora nos outros países, contra todas as iniciativas emergenciais tomadas pelos outros governantes, contra todas as recomendações dos cientistas especialistas neste assunto tão específico e delicado? Ainda mais sem qualquer embasamento senão na própria opinião e convicção, esdrúxulas e ignóbeis.

Há de se reconhecer que o governante em questão não é burro; ele e sua corja sabem muito bem o que estão fazendo e têm a visão clara dos objetivos que perseguem. Ele fala a linguagem do povo e aproveita do preconceito e da ignorância para convencer as pessoas de que a doença, mesmo que esteja matando alguns milhares por aí, é só uma “gripezinha”, como já vinha declarando há semanas. “O remédio não pode ser pior do que a doença”, não é mesmo? E por incrível que pareça, muitos acreditam cegamente nestes argumentos simplórios e traiçoeiros. Todo o resto é alarmismo, campanha midiática, conspiração chinesa ou golpe comunista. Só falta citar o molusco e seu terrível partido…

Empresários enrugados engrossam esse discurso, preocupados com a economia da nação e, ora vejam só quanta bondade, com as mazelas sociais que advirão da inevitável crise econômica que assolará o planeta inteiro. Aos trabalhadores, resta então as contas que não param e não vão parar de chegar, junto com a ameaça sórdida do desemprego. Amargar a rua por causa de um “resfriadinho”? Nem fodendo! “Ficar em casa é coisa de covarde!”

O mandatário sabe muito bem que quanto mais pessoas estiverem circulando, maior será a transmissão cabal desse vírus. Ele também conhece o potencial assassino da criatura microscópica, não apenas aos velhinhos, e está consciente de que os sistemas de saúde, sistematicamente insuficientes, entrarão em colapso, principalmente quando a epidemia varrer as periferias carentes do nosso país. Pois é exatamente isso que ele almeja.

O quê? Reduzir a população? Não! Reduzir o máximo possível de pobres e velhos. Doentes crônicos, é um extra.

Não se trata de pura e simples maldade. Há método nisso tudo. Em termos econômicos, é uma oportunidade. Se haverá uma crise, bem… por mais inevitável que seja, então que se tire algum proveito dela, não? Por mais repulsiva que seja tal linha de raciocínio, pode ter certeza que o norte das decisões governamentais é contabilizado em cifras, não em vidas humanas, então é preciso pensar dentro desta lógica doentia para tentar compreender os recentes posicionamentos presidenciais.

Há hoje dois grandes problemas socioeconômicos pairando no horizonte: insustentabilidade da previdência (com tendência de aumento da população idosa) e desemprego. Qual seria o impacto da redução abrupta e radical de, digamos, 20% da demanda previdenciária do país, chutando baixo?

Quanto ao desemprego, hoje vivemos uma realidade tecnológica muito distinta e que evolui em altíssima velocidade. Esqueçam aquelas grandes fábricas, galpões e linhas de produção que empregavam milhares de operários. Isso já é coisa do passado, assim como os nossos finados direitos trabalhistas. Automatização e uberização serão a regra daqui em diante. Veículos automatizados e entregas feitas por drones já são uma realidade, só para citar um exemplo banal. Então o que fazer com a massa de desempregados, pobres e desalentados que não possuem e nunca possuirão qualquer capacitação para entrarem em um mercado de trabalho cada vez menor e mais exigente?

Claro que haveria soluções humanas efetivas para essas questões, mas implantá-las viria em conflito direto com a própria lógica do mercado capitalista, vide políticas de distribuição de riqueza, taxação de grandes fortunas e renda básica universal, ou seja, para todos. Alguns dos maiores bilionários do planeta já levantaram a plausibilidade dessas opções, mas aqui, bem… em terras tupiniquins nós temos um governo e seu mandatário máximo posicionados de quatro para os interesses de uma elite mesquinha, incapaz de enxergar o benefício que todos e até eles mesmos usufruiriam dentro de uma sociedade mais igualitária e saudável. “Vai pra Cuba!”

Certamente a mão livre do mercado não vai nos livrar dessa encrenca, e os bancos, sempre eles, provavelmente já se preparam para passar a mão em cheio na bunda de todos nós. O enfrentamento e as consequências dessa pandemia horrível serviria muito bem como oportunidade para ao menos tentarmos corrigir as distorções atrozes do capitalismo vigente, neoliberal, que são tão evidentes nos dias atuais. Os privilegiados, no entanto, mais uma vez preferem garantir seus impérios reluzentes e intocados. Lutarão por isso. Advogam pela manutenção das suas riquezas milionárias e já optaram pelo extermínio que julgam… conveniente.

Então, camarada, aguenta firme, mantenha-se vivo e fica em casa.