Quarentena, dia 7 (26/03/2020)
Por Eduardo Kaze
“Brasileiro tem que ser estudado. Ele não pega nada. Você vê o cara pulando em esgoto, sai, mergulha, tá certo, e não acontece nada com ele”, diz JB, a Besta, que acrescenta: “Lotéricas podem ficar abertas, têm vidro blindado, não passa tiro, vai passar o vírus?” O cerco se fecha. JB, a Besta, sucumbe este ano – se não de gripe, de impedimento político.
Não prossegui o estudo de Marx hoje – quer dizer, prossegui… mas relatar ficou difícil. Abastecido de uísque, e cansado do jornalismo, parei de ler pra escrever – meu verdadeiro trabalho, o resto é fonte de renda. Sei, também, que prometo a todos a publicação do primeiro capítulo d´O Poderoso DIGBY há um tempo. Mas, no interim entre a finalização do texto e a realização da edição, comecei a escrever uma história que me arrebatou. Ficou nomeada como Senhor Solitário.
A ideia surgiu ao ver um rapaz, nos 40 e poucos anos que, ao aguardar o ônibus, sentava-se do lado oposto da rua e, quando o coletivo despontava no horizonte, só aí, atravessava. De bobeira, comecei a imaginar a personagem e o livro chega agora (após um arroubo alcoólico que me providenciou 10 páginas numa noite), à página 43 – de maneira que certamente o publicarei antes.
Assim, segue um trecho, pra degustação.
SENHOR SOLITÁRIO: No canal 7, o pastor, de novo, é a miragem da esposa. Munido de livro, segue na cozinha após o jantar. A esposa recusara a refeição – intacta na cabeceira da poltrona. Não sabe, ainda, de Isabele, da consonância, mas sente em cada fibra, músculo e osso, que está à beira da revolução. Contemplado pela alegria, anuncia: “vou sair. Estamos sem pão…”. Segue para o parque, para a quadra, e assiste – assiste pouco – o jogo: “mesmo preço de sempre, certo?”, indaga ao jogador.
“Sim, mas vamos beber antes; quero um cigarro…”
*
O nome dele é Ruan, com “erre” mesmo, e tem 17 anos.
“Terminando o colegial, dou no pé”, diz tragando a cerveja proibida, providenciada pelo maior.
“Vou pro litoral, praia dos Sul”, vagueia Ruan. “Posso outra?”, pede.
“Sim.”
“Valeu…”
Ruan tem cor de café rendido e tem, por acaso, olhos esverdeados, frutos de estupros ancestrais ajuizados por caucasianos donos de tudo.
“A mãe da bisa foi escrava”, ouve em casa.
E daí?
Bonito, piscando olhos esmeralda, sobrevive à escola. Cafuzos menos afortunados serão aniquilados – venderão balas no farol em retrovisores; não piscam verde, são só pretos.
Ruan pisca.
Ruan pisca, enrola o cabelo enrolado e morde o lábio, sedutor que é.
E consegue o mundo – ou o que pensa dele.
“Vamo agora!”, decreta satisfeito do boteco.
E vão.
Ruan, iludido pela prosperidade ocasional, se dá. O cliente gosta que lhe mijem à cara; tapas na orelha, enforcamentos valem dinheiro: “o de sempre”. Não importa a moral. Ruan sabe que compra um doce pra ele, um cigarro, e volta pra casa com leite – seu ingresso.
Pode dormir e, no outro dia, jogar de novo, Ruan que é.Eduardo KazeRedatoria Gonzo
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