Estranhos Atratores

Santo André vintevinte – Ana Mesquita

Um plano em suspensão ou uma possível mudança de rota

Por Ana Mesquita

Foto – Camila Visentainer

Esse texto era pra ser outro. No fim do ano passado pessoas que orbitam a minha volta, e que são muito mais ligadas nesse negócio de pensar o ABC paulista do que eu, me deram a letra de que 2020 seria uma efeméride de 20 anos (ou seriam 30?) do plano “Santo André Cidade Futuro”, o planejamento estratégico da gestão do Celso Daniel para a cidade.

A ideia central – e isso não saiu da minha cabeça sozinha, há de se creditar Celina Lerner e Silvia Passarelli na construção dessa ideia – era escrever um artigo por mês ao longo do ano de 2020, aqui neste espaço, sobre o planejamento da gestão Celso Daniel, um plano que pensou nossa amada André City para 30 anos. Como se planeja uma cidade para 30 anos? Como se planeja as áreas específicas de cultura e direito à cidade para 20 anos? 30 anos? A coluna já tinha até nome na minha cabeça: Santo André vintevinte.

Por que cultura junto com direito à cidade? Porque em minhas mais recentes pesquisas percebi que é impossível defender um conceito ampliado de cultura, aquele no qual acreditamos que cultura são todos os nossos saberes e fazeres do cotidiano, sem incluir, radicalmente, o direito à cidade. Um exemplo é a questão da mobilidade urbana, transporte público. Como possibilitar a acessibilidade aos bens culturais materiais de cidade com a passagem no preço que tá? Olhando para os mapas de distribuição desses bens culturais a grande maioria, esmagadora, encontra-se nos bairros centrais de uma cidade, de qualquer cidade. Sim, a cultura está em toda a parte e cada cozinheira desse meu Brasil é uma fazedora de cultura, mas não podemos guetizar esse fazer, é preciso circular, é preciso criar repertório, até mesmo pra contrapor com mais propriedade o que o establishment nos impõe. Como diz o professor Alexandre Barbalho da UECE, diversidade horizontal é fácil, é fácil ser tolerante com quem está do meu lado, quero ver a convivência cotidiana e naturalizada com a diversidade quando o debate for vertical, de classe, ou seja, quando de fato todas as classes sociais passem a frequentar os mesmos lugares da classe média e elite.

Por isso o debate sobre mobilidade urbana deve ser entendido, também, como uma debate da cultura. Em 2003 quando fui pela segunda vez ao Fórum Social Mundial, me estendi alguns dias a mais por Porto Alegre, e pude vivenciar uma experiência de gratuidade no transporte público que acontecia 1 domingo por mês. Em Salvador em 2012 também vivenciei algo parecido num domingo, quando as tarifas dos ônibus têm um valor reduzido (apesar de amigos depois me alertarem que a frota de ônibus reduz drasticamente). Não temos nenhuma experiência como essas aqui no ABC, nem de longe se debate isso, nem mesmo a maior e mais rica metrópole do país possui um dia de gratuidade no transporte público.

Acreditei que seria interessante olhar para o projeto de cidade do Celso Daniel para o ano de 2020 e de que forma suas ideias e ações estavam defasadas (sim, todo planejamento necessita revisões) ou atuais, à frente do seu tempo. Descobri (Silvia Passarelli me soprou aos ouvidos), que o Museu de Santo André poderia ter o material que eu necessitava. Fui eu passar uma tarde de janeiro no Museu para saber o que tinha por lá. Lá fiquei sabendo que o todo o material disponível no museu, os documentos sobre esse assunto tinha acabado de ser organizados e catalogados, e que o material poderia ser acessado ao público em março, pois ainda precisavam fazer uma listagem para facilitar a consulta. Pela atenta, dedicada e querida Suzana Kleeb fiquei sabendo que o material é fortemente calcado na questão da identidade do ABC, que a forma que a informação está organizada é única na gestão pública e que o material é inédito e rico para pesquisas.

No dia 19 de março esse material ficou disponível para consulta pública, no mesmo dia em que foi ordenado o fechamento de todos os equipamentos públicos da área da cultura, incluindo o Museu de Santo André.

As análises e observações sobre o nosso querido e amado ABC vão ter que esperar um pouco, pelo menos nessa perspectiva na qual tinha me proposto.

Essa pandemia de COVID-19 afetará diretamente esses dois assuntos que estão imbricados e conectados, cultura e direito à cidade. A restrição da circulação, da mobilidade urbana, foi o primeiro elemento urbano afetado pelo isolamento social. Por tudo isso, acredito que cabe a nós, intelectuais orgânicos, pesquisadores, jornalistas etc. começar a pensar sobre o ABC frente a essa nova realidade. Cabe a nós escrever sobre esse nosso microcosmo de subúrbio operário frente a um mundo que já não existe, e que não sabemos como será.

Volto a escrever com certa regularidade neste espaço, na mesma frequência que minha saúde mental me permita, com a missão de “sonhar um mundo que não existe”, como disse a genial Helena Vieira.