Estranhos Atratores

Elocubrações humanistas direto de Ilha Bela

Por Douglas Souza

Sentado no quintal da minha casa no morro onde moro, consigo ver no horizonte, destacadamente, uma nuvem negra se aproximando. Enquanto isso acima de mim, urubus voam em círculos aproveitando as correntes de ar quente que sobem da terra. Voam para o alto em busca do ar rarefeito que os ajuda purificar o seu interior, auxiliando assim a digestão do alimento podre que consomem. Ficam muito tempo nas alturas a fim de executar esse processo. Para nós, isso pode parecer estranho mas a natureza tem suas razões e sempre cria condições para a vida. Essa é a forma dos urubus sobreviverem. Fico imaginando o caminho oculto deles no ar e como determinam essa trilha ao léu. O labirinto invisível dos urubus. Imagino quais trilhas faremos para atravessar o momento que vivemos e o nosso futuro cada vez mais imprevisível. De que forma vamos sobreviver a tudo isso?

Fazendo uma pesquisa rápida em um dicionário etimológico, descubro que o termo trilhar vem do latim “tribulare”, “debulhar”. No sentido de “exercer pressão sobre algo” trilhar significa “pisar sobre”, calcar e recalcar o caminho. Ele mostra ainda que as palavras oprimir, afligir ou tribulação possuem suas raízes em Tribulare, que também associa o termo à debulhar o grão.

Quando comecei a escrever esse texto há alguns dias, minha impressão que o mais importante para nós, reles mortais sem grana e sem parentes importantes, era encontrar maneiras de ficar com a cabeça fria e não endoidar vivendo o isolamento social em meio a tragédia anunciada que a sociedade de consumo nos colocou, a derrocada do neoliberalismo e com isso o desejo das grandes corporações e seu exército de séquitos em tentar manter a qualquer custo um mundo que dá seus últimos suspiros, e o custo nesse caso é o extermínio em massa da parcela pobre da sociedade, a urgência em não aceitarmos que esse mundo da normalidade do consumo volte ainda mais opressor, mais violento, ou seja, como trilhar esse caminho sem ser “debulhado” por ele.

Vendo o aumento de reportagens de especialistas, psicólogos e psicanalistas alertando para as maneiras de segurar a onda sem pirar, isso me parece relevante nesse momento.

Foto: Douglas Souza

Para quem vive em uma ilha, a noção de afastamento faz parte do cotidiano. Muitas vezes o clima dá as regras e mostra quem manda, impedindo a travessia para o continente.

Nessas condições, a geografia influencia o comportamento das pessoas tanto quanto ou mais que o clima. Como se por estar “separado” do continente, não fazemos parte dele e isso causa comportamentos muito particulares nas pessoas.

A xenofobia, por exemplo, sobreleva-se de modo inimaginável. Basta ver os comentários nos grupos locais do facebook para entender que o medo potencializa os preconceitos e a noção de segurança converge sempre para a superproteção, sem importar qualquer argumento que justifique as garantias constitucionais dos indivíduos. Às vezes, isso realmente chega à beira da loucura. A loucura em acreditar que é possível viver isolado do mundo, como uma tribo afastada do planeta e que assim ficará protegido do vírus mortal. Obviamente isso não é exclusividade de cidadãos ilhéus.

No início da pandemia, todos lembraram do livro Ensaio sobre a Cegueira, do escritor José Saramago, porém, lembro aqui outro livro dele para ilustrar o assunto. No seu livro “A Jangada de Pedra” ele narra a separação geográfica da Península Ibérica, navegando à deriva, deslocada do continente em uma alusão ao afastamento deles com o restante da Europa unificada. A narrativa tem um clima de incertezas e pressentimentos de fim do mundo. Sentimentos muito presentes atualmente.

É claro que a reboque dessa ideia está o policiamento e o controle, e entre tantas preocupações essa é das mais relevantes para o que virá, porque a partir disso não estamos mais falando de uma ilha, mas ao que tudo indica, do arquipélago com alta vigilância que se transformará o nosso planeta e a nossa vida em um Estado de Exceção Global.

O Estado Policial, sob a alegação sanitária, vai ampliar o máximo possível a vigilância sobre cada indivíduo. Como já vem fazendo há anos através dos algoritmos e vai fazer de tudo para nos sufocar ainda mais.

Considerando esse Estado de Exceção que vai intensificar sua sanha pelo controle dos indivíduos, imagino maneiras de sobreviver buscando exemplos e dicas de quem passou por experiências radicais de isolamento físico e deu a letra de como segurar essa barra. Há quem diga que procurar por isso nesse momento é coisa de privilegiados, talvez seja mesmo, mas lembro que a história do conhecimento está pautada em aprender a partir das dificuldades e exemplos, então talvez baste o “privilégio” de estar vivo para continuar essa busca. No sistema capitalista, neoliberal brazuca de extermínio dos pobres, para quem não é rico, ficar vivo é mesmo quase um privilégio. De todo modo devo dizer que qualquer dica que venha de algum milionário, abastado, qualquer tipo de “coach” ou “quarentener” não tem nenhuma serventia. Meu desejo é que releguem a esses apenas o descaso, a chacota e a lembrança de que são protegidos pelo sistema de poder e não tem absolutamente nada para nos dizer. Nunca foi tão urgente desobedece-los.

“Pedras de tropeço transmudadas em pedras de toque”, escreveu o poeta guru Waly Salomão no poema Dedicatória que fez para Hélio Oiticica em seu último livro O mel do melhor. Ele também contava que seu primeiro livro “Me segura qu’eu vou dar um troço” nasceu no momento em que ele estava preso no Carandiru. Confinado, trancado numa cela, limitado geograficamente, houve o impulso criativo do livro: “Eu tive que me libertar para fora daquelas grades, através da arte”, dizia o poeta.

São muitos exemplos de artistas que criaram obras de arte em momentos de reclusão. É como se em momentos limites, nossa criatividade para questões fundamentais se projetasse para além de todas as limitações. Obviamente as pessoas não foram feitas para ficarem confinadas mas e quando não temos outra opção a não ser o isolamento?

Frei Betto em seu livro Batismo de Sangue conta que na prisão do DOPS os Frades e os detentos pelo regime militar se ocupavam estudando e ensinando um ao outro o que sabiam, formavam classes de aulas em diversas áreas do conhecimento e assim aliviavam o peso do tempo no cárcere. Rodou dias atrás na rede social um texto do próprio Frei Betto com dicas para suportar o isolamento. Enfim, há muito conteúdo interessante sobre o assunto e a lista de dicas e histórias sobre o que já foi  produzido em momentos de quarentena vai muito além de Shakespeare e Isaac Newton. Evidentemente não é necessário se comparar a nenhum deles e não se trata de romantizar nada. O isolamento social é maçante e temos que suportá-lo pensando e criando as formas de enfrentamento pessoais e coletivas para a próxima etapa.

O Filosofo Francês Bruno Latour em um texto escrito recentemente com o título “Imaginar Gestos que Barrem o retorno da produção pré-crise” 1  propõe aproveitarmos o momento de confinamento em que estamos obrigados para refletirmos e agirmos. Com a suspensão da economia globalizada, nessa hora em que a locomotiva desembestada do consumo e da produção está estacionada, decidirmos sobre o que estamos dispostos a nos livrar, o que vamos interromper para que individualmente provoquemos uma situação diferente da anterior, pré coronavírus.

É provável que o Estado de Exceção Global avance tentando impedir a falência do capitalismo e da sua nova roupa, o neoliberalismo. Como na informática, o vírus está aí para mostrar as falhas desse sistema.

Sistemas de saúde precarizados, sistemas de assistência sociais inexistentes, autoridades totalmente desorientadas e despreparadas para restaurar as condições mínimas de sobrevivência, líderes que não lideram nada e a possibilidade de que tudo isso transpareça para a população em geral mesmo que isso aconteça depois de ocupar todas as covas do cemitério de Paraisópolis e todos os outros cemitérios.  Essa população em que uma parcela mínima faz carreatas contra as recomendações da OMS com o negacionismo de terraplanistas que insistem em desacreditar dos fatos tanto quanto da própria ignorância.

Na trilha das leituras do momento, recomendo o artigo “Contágio social: Coronavírus e a luta de classes microbiológica na China” 2  do Coletivo Chinês Chuang, traduzido e disponível em português pela editora Veneta, que faz uma radiografia importante sobre o enfrentamento da crise que vivemos.

No Brasil dos últimos anos, imaginar mudanças para melhor é um exercício utópico com alto gasto de energia, mesmo assim ainda é necessário para saúde física e mental. O mundo em modo de suspensão parece mostrar a possibilidade de mudança do sistema de produção e consumo. O vírus microscópico está mostrando que isso é possível e necessário. Com que urgência vamos realizar é uma outra história.

A tarefa de buscar o mínimo de sanidade por aqui não é um caminho fácil.

Nosso período de recolhimento não vai trazer as respostas de como driblar a fome, o medo, a raiva, as incertezas, o estado policialesco, o governo fascista, a necropolítica e todas as desgraças que nos cercam. Possivelmente ele nos traga ainda mais dúvidas, reforçando que 2020 é mesmo o ano da incerteza e lembrando que a própria vida é inquietante.

Certeza mesmo apenas a de que o capitalismo não nos serve.

Também fica cada dia mais claro algumas necessidades:

  • O fortalecimento dos nossos laços de afeto e do encontro – físico-. (para depois da quarentena!).
  • A defesa do Sistema Público de Saúde e Assistência Social.
  • O avanço na luta por mais investimento em pesquisa e educação.
  • O autocuidado e as ações de solidariedade.
  • Dedicar mais tempo aos grupos de afinidade.
  • Apoiar integralmente as ações de defesa do meio ambiente. Ter em mente que qualquer um que atue contra o meio ambiente é nosso inimigo.

Não estamos separados do meio ambiente, somos parte dele, como uma lagarta, um urubu ou um vírus e isso todo mundo sabe. Muitos se esquecem.

O ser humano sempre observou a natureza e em outras épocas parece que aprendia bastante com ela.

Pensando nisso recorro ao I Ching, sabedoria milenar chinesa que por coincidência vem do mesmo lugar que o tal vírus. Observando a natureza e suas mutações criou metáforas poderosas como aquela em que nos lembra que a lagarta, para se expandir, se contrai.

Divido com vocês essas reflexões imaginando nossa trilha invisível enquanto tento permanecer com a cabeça fria e o coração quente.

Atento aos urubus que nos rodeiam.

Douglas Souza é poeta e publica seus trabalhos em:

https://www.facebook.com/toxidade/

1 –  Imaginar Gestos que Barrem o retorno da produção pré-crise  (Bruno Latour)

https://n-1edicoes.org/008-1

2 – Contágio social: Coronavírus e a luta de classes microbiológica na China (Coletivo Chinês Chuang)

https://veneta.com.br/produto/contagio-social-epub/