Estranhos Atratores

Prefeitura de Santo André suspende festa literária e argumento diverge dos organizadores

Comunicado afirma que evento foi suspenso por problemas estruturais no local onde seria realizado, mas organizadores  afirmam que motivação foi crítica dos artistas

Eduardo Kaze

A Festa Literária de Santo André (FLISA), programada para ocorrer entre 17 e 20 de agosto no Paço Municipal, foi suspensa pela prefeitura do município após massiva campanha de artistas, que revelaram irregularidades no evento. Entretanto, segundo o comunicado oficial, o adiamento ocorreu por problemas estruturais no local onde a festa seria realizada, despertando muita desconfiança.

A contratação da empresa SP Eventos para a realização da festa ocorreu por meio de um pregão: No dia 20 de julho, a prefeitura emitiu o chamamento; a 1 de agosto, abriu os envelopes com as propostas orçamentárias e, dois dias depois, anunciou a contratação em publicidade legal, no valor, de R$ 3.375.000,00 –  quase 47 vezes o orçamento destinado aos artistas no aniversário de Santo André (72 mil), e mais de 18 vezes o destinado ao Festival de Inverno de Paranapiacaba (R$ 185 mil), sem incluir os gastos com infraestrutura. 

Empresa foi condenada em SP

Artistas da cidade criaram um grupo de WhatsApp, onde passaram a se corresponder e investigar o assunto. Segundo eles, ficou constatado que a empresa foi condenada pelo Município de São Paulo por fraude em licitação pública, por “irregularidades nos procedimentos adotados pela Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC) na contratação de serviços de infraestrutura e logística, fornecimento de mão de obra e materiais, necessários à realização dos eventos relacionados ao mês do orgulho LGBT/2015”.

Os documentos apontam que “a contratação da ré (SP Eventos)  tinha o objetivo de fornecer serviços de infraestruturas e logísticas, mão de obra e materiais necessários para realização de eventos relacionados ao mês do Orgulho LGBTQIA+/2015. No entanto, de acordo com o relatório de auditoria, as fls. 272-390, realizado pela Controladoria do Município de São Paulo, foram relatadas várias irregularidades”.

A decisão foi proferida pelo Juiz de Direito Luis Manuel Fonseca Pires, em 31 de janeiro de 2022 e cabe recurso. Pela deliberação da Justiça, porém, a SP Eventos deveria realizar o ressarcimento “do dano causado ao erário municipal, no valor de R$ 114.449.40”, além de ter “a proibição de receber incentivos e subsídios, subvençãos, doações ou empréstimos de órgão ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público”. 

Tais irregularidades, contudo, foram ignoradas pela prefeitura andreense, segundo a qual a revogação do certame do pregão se deu por “necessidade de continuidade da obra, na área em que seria realizado o evento”. O comunicado oficial, com recomendações da Secretaria de Infraestrutura e Serviços Urbanos, afirma: “Verificamos ainda que com o início da recuperação do reservatório elevado sobre o prédio, no teste de estanqueidade ficou constatado que o mesmo não está estanque, portanto, não sendo possível a sua utilização […] Notamos também que ao retirar os forros da laje da biblioteca, foi identificado muitos pontos com patologias de concretagem […] Portanto, considerando todo o exposto acima, considerando que não é possível a conclusão dos reparos principalmente do reservatório de água para a data de interesse, tendo em vista que além dos reparos temos o tempo de cura e a higienização do reservatório, a minha recomendação é que se reavalie a realização do evento.”

A orientação foi acatada e assinada pela pregoeira oficial: “diante dos fatos novos noticiados em que se faz necessária a continuidade da realização da obra mencionada, não resta outra alternativa a não ser a REVOGAÇÃO do presente certame”, diz o documento.

Organizadores têm outra versão

Organizadores do evento, contradizendo a própria prefeitura, atribuem aos artistas o cancelamento da festa. No portal Bastidor Político, onde se encontram diversos textos assinados por Samuel Boss, um dos responsáveis pela festa, texto anônimo acusa: “Nenhum escritor que se manifestou nas redes sociais ou gravou vídeo contra a Festa Literária de Santo André leu o Edital ou Termo de Referência que norteia a peça da licitação.”

O autor usa como prova da suposta desinformação o fato de “que o nome Flisa significa Festa Literária, mas o movimento insiste em dizer e propagar que é uma Feira. Ou seja, nunca leram o edital”. A confusão, contudo, acontece, também, tanto no edital – estudado pelos artistas – quanto no comunicado de revogação.

O texto é finalizado com um questionamento afirmando que o cancelamento ocorreu por pressão dos artistas, não pelas obras citadas pela prefeitura: “Se os agentes culturais da cidade derrubam um evento que traria o fomento à escrita e à leitura, por total falta de leitura, o que esperar das nossas crianças e adolescentes?”

Artistas desconfiam de lavagem de dinheiro

A origem da verba para a festa, e a forma como vem sendo utilizada, também foi foco da investigação dos artistas. Segundo o edital, o dinheiro viria de duas fontes: do Tesouro Municipal e do Fundo de Educação – Ensino Fundamental. 

Após a repercussão de que artistas locais não estavam sendo chamados, Reynaldo Bessa, curador do evento, entrou em contato com alguns escritores, a quem ofereceu o pagamento de R$ 1 mil, em dinheiro, após o evento e sem nota fiscal.  “Quando Bessa me convidou ontem à noite (7/8), falou isso: que eu falaria no máximo por 30 minutos, levaria R$1.000,00 em dinheiro, logo após a minha fala”, revelou, em grupo de WhatsApp,  uma artista convidada.

Bola cantada no pregão

Os artistas chamam a atenção também pelo fato inusitado de – ficou-se sabendo mais tarde – alguns terem recebido e-mails enviados pelo curador do evento com convites, meses antes da ratificação do pregão, com datas de maio deste ano, o que levantou suspeitas quanto à honestidade do processo.

Um dossiê com as denúncias está sendo elaborado pelo grupo de artistas e deverá ser encaminhado ao Ministério Público e Tribunal de Contas. “Não podemos simplesmente fechar os olhos, estão pilhando nossa cidade e, ao que tudo indica, é um procedimento sistemático, já que o mesmo modelo foi realizado em Ribeirão Pires (Feira Literária de Ribeirão Pires), com pagamentos realizados sem nota fiscal”, disse um escritor que preferiu não se identificar.

 

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