Estranhos Atratores

Por Marcelo Mendez

Fotos Maristela Rainieri

Era um céu laranja que coloria a noite em Santo André. Mas não havia nada de muito poético nisso. Ou se havia, faltou a este Jornalista sentir isso.

Da janela do banco de trás do carro que me levava para a pauta, eu olhava para aquele céu e conseguia sentir ao invés de versos metafóricos e oníricos, todo peso de um Cidade suja, poluída, com perfume de monóxido de carbono, misturado com cheiro de fritura e óleo diesel exalado dos carros da hora das festas do povo. Era sábado 22 horas. Dez da noite. Na hora que o Sérgio Sampaio cantou uma vez que estava passando um filme de terror, a lua, emaranhada por nuvens de chumbo e enxofre ultra processado, caminhava comigo pelas ruas iluminadas não por neon Odara, mas por lâmpadas de led. A sensação era de um evidente incômodo, um desconforto, mas não tem problema.

Nos especializamos em resistência e desconfortos e toda poesia que surgir por esse período terá que vir daí desse incômodo. E naquela noite, no Apostrophe, havia uma cantora que bailava como uma pluma por entre esses incômodos e desconfortos para tirar uma onda chique e elegante. Carol Cavesso.

CAROL E OTIS, A PARCERIA QUE DESARMA A RENITÊNCIA DOS CONTENTES

Soube da Carol por um vídeo que me mandaram. Uma Garota que cantava uma música da Maysa em um palco mínimo, de um lugar barulhento cujo o noise passou a ser insignificante aos ouvidos. Quando ela começou a cantar a única coisa que o quase-juízo deixava a atenção cuidar era de ouvi-la. Pouco importa os bebuns imberbes, ou os velhos beberrões que flutuam ou pousam na noite alta. Nem aí para os que estão ao redor. Quando Carol canta só ela importa e isso me surpreendeu. Assim como me surpreendeu a parceria dela com o Otis Trio. Quando vi que teria um show com o trio de jazz mais hard das candongas, corri para ver de perto. Cheguei e vi meus amigos já se aprontando para cometer os sons.

 

João Ciriaco, seu Baixo acústico e seu sorriso de Thelonius a me dar um abraço. Montando sua bateria, Flavio Lazzarin me sorriu uma simpatia e ao lado deles, Luiz “Titcha” Galvão. O Maestro que podemos ter, um xamã elétrico que há tempos hipnotiza a vida andreense com as cordas de sua Epiphone Sheraton e seus improvisos incandescentes. Se você quer notas óbvias não veja o Titcha em ação. Ele não propõe a música que convém, ao contrário disso, te chama para buscar com ele e seu instrumento, os sons que regem a sinfonia dos tempos diversos e paixões possíveis de se viver. A música, afinal. Ele me vê. Da um abraço de amigo, comento com ele a onda de ter um show novo muito diferente desses 15 anos de Otis Trio e ele me conta da experiência de tocar com Carol Cavesso:

“Ta sendo muito legal, uma outra abordagem que ta fluindo muito bem, porquê o Otis Trio nunca tinha feito nada para o formato de canção. Mas ela é uma Artista muito potente, muito criativa, compositora com uma interpretação incrível. É sempre desafiador fazer música, mas com a Carol ta tudo indo muito bem, ta sendo ótimo” – Muito feliz com o resultado dessa parceria que começou já há um ano, Luiz Galvão conta do que vem pela frente:

“Estamos nos preparando para entrar em estúdio em outubro para fazer o disco com ela e a ideia é ter músicas autorais, já temos algumas nossas, umas que compomos juntos, outras dela, tem uma com letra minha e assim tem sido nossa troca, já já tem novidades.”

Enquanto falávamos e as pessoas iam chegando no Apostrophe, um clarão se fez na noite para o sorriso da Carol chegar com ela. Uma garota inteligente, simpática, gentil que já ia fazer seu talento jorrar palco afora. Trocamos um cumprimento daqueles protocolares para conversar depois. Era a hora do show. Uma mulher que desafia as soluções óbvias atacaria os corações afoitos embevecidos de drinks coloridos.

 

CAROL CAVESSO E OS OTIS BOYS PARA UM BANQUETE DE NOTAS FLAMEJANTES

Os primeiros acordes do Otis Trio dão o devido rasgo de poesia no Apostrophe Bar. Não é o groove comunzão, sincopado pré-preparado para consumo simples que se tem por aí e por mais de uma vez aviso a vocês; Esse tipo de coisa não haverá por aqui por que não há clichês baratos na roleta criativa vertiginosa do Otis Trio. As harmonias abertas de quem não tem medo do improviso oferecem uma experiência única a cada show. E por essas camadas sonoras livres, começa o “Theme de Yoyo” que àquela altura não era mais do Art Ensemble of Chicago, mas sim da Carol Cavesso.

 

Não da para definir de maneira pragmática a performance da Carol com o Otis Trio. Carol Cavesso é uma Cantora, uma Artista que atua num lugar onde não há espaço para a razão pura e simples. De microfone na mão e com o coração queimando junto com as notas do Otis Trio, ela é poesia, raiva e encanto, paz e desespero, lirismo e principalmente fúria. Uma fúria Santa e apaixonada. Seguiu assim por entre sons como Song of Hope (Willian Parker), em uma catarse na interpretação de “Só você” da Maysa, dando vida nova para um clássico de Evinha, “Esperar pra ver”, dando um drible nos sentidos de quem estava por la com “Jardins de Infância” de João Bosco e Aldir Blanc. Um espetáculo. Depois de um tempo após o show batemos um papo e Carol teve tempo de me dizer:

“Mesmo sendo um projeto jovem, tem sido muito intenso e muito bom tocar com Otis. Eu ainda não havia tido muito contato com a improvisação musical antes deles, as vezes gera um desconforto necessário para eu me colocar num lugar de aprendizado mesmo e quem vem para ver, vem sabendo que é essa a experiência que temos para oferecer e to gostando muito, ta sendo ótimo. Está fazendo muito sentido para mim, me interessa o que vamos tirar disso para além da música.”

E tudo foi além.

Meus olhos devastados por olheiras comuns, passaram a ter então um pouco de dignidade após ver Carol Cavesso. Cantando, ela derreteu a minha e a todas as retinas, nos tirou de um tempo sem charme para uma viagem subversiva e transgressiva rumo ao coração das Artes pela noite adentro e ao término de tudo, se despediu com um riso de Lena Horn. Seguimos, mas não como antes.

Depois da Carol Cavesso cantar, nada tem como ser como antes. Quiçá as retinas!