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Por Jairo Costa*
Desde o século XVI, inúmeros cronistas registraram diversas manifestações fantásticas ocorridas nos sertões do país, e algumas destas lendas nativas ganharam suas primeiras citações escritas quando seus autores perambulavam pelos caminhos indígenas do vale do Rio Mogi, em Paranapiacaba, que conectava o litoral paulista à região do ABC e São Paulo.
Neste local transitaram, entre São Vicente e a mítica e (hoje) desaparecida vila de Santo André da Borda do Campo, personagens ilustres e controversos da história do Brasil, como o bandeirante português João Ramalho, o padre espanhol José de Anchieta, o padre português Manoel da Nobrega e o cacique Tibiriçá, da tribo dos Tupiniquins, que vivia onde hoje é o centro velho de São Paulo, nas imediações do Pateo do Collegio, na região da Sé.
Foi percorrendo esses caminhos que Anchieta teve contato com viajantes e obteve relatos assombrosos de nossos monstros danados mais extraordinários, o Curupira, o Boitatá e o famigerado Anhangá, todos habitantes do panteão das lendas mais populares do país.
O Curupira no Peabiru
A lenda do Curupira é uma das mais populares e antigas do Brasil. Quando os colonizadores europeus chegaram por aqui, já encontraram os silvícolas, temerosos, narrando seus encontros com esta entidade misteriosa. O padre José de Anchieta, em suas inúmeras caminhadas entre São Vicente, cordilheira de Paranapiacaba, Santo André da Borda do Campo e São Paulo de Piratininga, testemunhou em carta o medo que os índios sentiam. Em um documento de 30 de maio de 1560 o padre jesuíta fala a respeito deste mito secular. Vejamos:
É coisa sabida e pela boca de todos corre que há certos demônios, a que os brasis [índios que extraíam o pau Brasil] chamam Corupira, que acometem aos Índios muitas vezes no mato, dão-lhe de açoites, machucam-n’os e matam-n’os. São testemunhas disto os nossos Irmãos, que viram algumas vezes os mortos por eles. Por isso, costumam os Índios deixar de certo caminho [Peabiru], que por ásperas brenhas vai ter ao interior das terras, no cume da mais alta montanha [serra de Paranapiacaba], quando por cá passam, penas de aves, abanadores, flechas e outras coisas semelhantes, como uma espécie de oblação [oferenda], rogando fervorosamente aos Curupiras que não lhes façam mal.
(Geografia dos mitos brasileiros, Luis da Camara Cascudo [acréscimos do autor])
Segundo a lenda, o Curupira pode ser definido como um espírito, um ser encantado, um deus da floresta, que anda pela mata protegendo a fauna e a flora, punindo quem as põe em perigo.
A história clássica o descreve como um ser pequeno, de aproximadamente 1,30 metro, mas com uma força física descomunal. Ele tem o corpo completamente coberto de pelos, dentes irregulares, verdes, cabelos ruivos desgrenhados e pés longos, virados para trás. O curupira costuma habitar a mata profunda, mantendo-se distante de povoados e cidades.
No interior do Brasil, principalmente na Amazônia, o Curupira é temido por caçadores, seringueiros e lenhadores, que o chamam de “mãe do mato”. Muitos homens costumam oferecer ao Curupira cigarros e cachaça, deixando essas oferendas nas trilhas no meio da selva, talvez para agradar o gênio, talvez para tentar mantê-lo ocupado enquanto fogem.
O Curupira costuma andar acompanhado de vários animais, que ficam à sua volta. Ele também é capaz de imitar a voz humana, tentando assim atrair os malfeitores da floresta para as suas garras.
Quando um caçador é pego pelo Curupira, o infeliz comumente toma uma surra do espírito da floresta e, quando é libertado, vaga desorientado, sem noção de tempo e espaço, por dias dentro da mata. Durante essa caminhada desesperada, ao léu, o Curupira emite gritos e assovios pavorosos para aumentar ainda mais o sofrimento de suas vítimas.
O Boitatá serpenteia pelo litoral e planalto paulista
Outro ser mitológico que vaga, secular, entre as campinas e praias paulistas é o também muito conhecido Boitatá, monstro que, assim como o Curupira, é igualmente assustador e mantêm os índios, matutos e pescadores em constante alerta.
As descrições sobre a aparência do Boitatá (também chamado de Mboitatá) são por vezes divergentes, mas em geral contam sobre uma misteriosa cobra de fogo de olhos grandes e furados.
Quando sobrevoa os campos, seja do litoral, seja do planalto paulista, o Boitatá ilumina toda a área a sua volta. O primeiro relato a respeito deste ser mítico foi também apresentado pelo padre José de Anchieta, que caminhava distâncias enormes através do Peabiru, também conhecido como trilha dos Tupiniquins (caminho milenar aberto por índios sul-americanos, que tinha uma de suas ramificações na região de Paranapiacaba). Anchieta deixou relato escrito no ano de 1560 dando notícias sobre este ser assombroso, como podemos ver:
Há também outros (fantasmas), máxime nas praias, que vivem a maior parte do tempo junto do mar e dos rios, e são chamados Baetatá, que quer dizer “coisa de fogo”, o que é o mesmo como se se dissesse “o que é todo fogo”. Não se vê outra cousa senão um facho cintilante correndo para ali; acomete rapidamente os índios e mata-os, como os curupiras; o que seja isto, ainda não se sabe com certeza.
(Geografia dos mitos brasileiros, Luis da Camara Cascudo)
Este ser encantado vive ao longo dos riachos e das praias também protegendo a floresta dos seus inimigos, aqueles que desmatam e incendeiam. Acredita-se que o Boitatá pode se transformar em uma tora em brasa para queimar suas vítimas.
Alguns relatos contam que a pessoa que encontra o Boitatá pode se tornar cega e até mesmo ficar louca; outros dizem que vários encontros já ocorridos com o Boitatá resultaram em morte de índios e pescadores.
Anhangá, o espírito “mau”, ronda Bertioga e São Paulo de Piratininga
Dizem que nos tempos do Brasil colonial, no século XVI, um espectro rondava as vilas, e os caminhos (peabirus) do litoral e do planalto paulista, provocando o terror em quem encontrava pela frente. Era um espírito sombrio, tido pelos jesuítas como maligno, que cruzava o caminho dos índios e dos novos ocupantes das terras, os portugueses e espanhóis.
Este ser assombrado era conhecido como Anhangá, um metamorfo que poderia se transformar em qualquer coisa, em onça, em macaco, em rato, em anta e em coruja; também em raposa, em porco, em morcego e tudo o mais.
Esta criatura era avistada comumente na região do litoral norte, entre Bertioga e Ubatuba, e no planalto paulista, perto da vila de Santo André da Borda do Campo e do povoado de São Paulo de Piratininga. A maioria das testemunhas que o encontravam narravam a visão de um cervo de cor branca, agigantado, com chifres enormes, de mais de dois metros de altura e de hipnotizantes e aterradores olhos vermelhos reluzentes.
Ilustração – Reprodução internet.
O Anhangá, segundo a lenda, seria responsável por proteger todos os animais da ação dos caçadores, sejam brancos ou índios.
O aventureiro alemão Hans Staden que no ano de 1546 foi capturado e feito prisioneiro de índios Tupinambás na região de Bertioga escreveu em seu livro “Duas viagens ao Brasil” que seus captores temiam muito um demônio chamado Ingange (anhangá) e que não gostavam de sair de suas malocas à noite, na escuridão, pois este ser sempre se manifestava, aparecendo diante deles.
Diz a lenda que o Anhangá costuma emitir um assovio, um silvo estridente, fantasmagórico, mata adentro, fazendo com que os animais fiquem em alerta e fujam dos possíveis caçadores.
Conta-se que os caçadores que veem o Anhangá imediatamente padecem de febre, delírio e depois ficam loucos, incontroláveis.
Também se afirma que, se uma pessoa inocente for atacada por alguma espécie de animal selvagem, basta gritar ”Valha-me Anhangá!”, que a criatura mítica se manifesta soltando um grito sombrio, que faz a fera desistir do ataque e fugir para dentro da floresta.
*Jairo Costa é escritor, editor, e mitologista. Publicou os livros Paranapiacaba lendas e Mitos, Constantino Castellani, Amazônia Fantástica, entre outros. É membro do Conselho Municipal de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arquitetônico-Urbanístico e Paisagístico de Santo André (Comdephaapasa) e um dos fundadores do movimento SOS Paranapiacaba.
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