Estranhos Atratores

O cavalo mordeu a tua cabeça? – Por Fhoutine Marie

Afinal de contas, o Oscar é bom ou ruim?

Pequenas reflexões sobre como lidamos com a mídia de massa.

Por Fhoutine Marie*

Uma brasileira é indicada ao Oscar de melhor filme contando da história do impeachment golpista sofrido primeira presidenta de seu país. Essa diretora vai ao tapete vermelho acompanhada de um homem que usa um boné com o símbolo de um importante movimento social brasileiro. Ela está acompanhada de uma líder indígena. Os três levam cartazes críticos à política do país. Dois deles fazem referência às invasões de terras indígenas e às mortes dos povos originários. O outro cartaz levanta a questão cuja resposta não parece ser tão misteriosa quanto as mortes das pessoas que poderiam ajudar a respondê-la: “quem matou Marielle?”

O Oscar é bom.

Nenhuma mulher ou pessoa não homem-cis é indicada à categoria Melhor Direção. Na história do maior prêmio da indústria do cinema tradicionalmente são laureados homens brancos cisgêneros. A opinião pública fica indignada com a ausência de indicação do filme Us, de Jordan Peele. A não indicação da atriz Lupita Nyongo para a categoria de atriz causa particular indignação, já que além da atuação marcante ela interpreta dois papéis no mesmo filme. Trata-se de um longa metragem de dirigido e estrelado por pessoas negras.

O Oscar é ruim.

Os prêmios principais – Melhor Filme e Melhor Direção – vão para um filme coreano que retrata o abismo da desigualdade social, os efeitos nefastos da precarização do trabalho sobre a vida de uma família e, no limite, como a luta pela sobrevivência pode fazer as pessoas mais vulneráveis e exploradas se voltarem umas contra as outras. O filme não é falado em inglês. Sua premiação representa também a ruptura de uma barreira, dada a rejeição do público estadunidense por legendas. Trata-se também de um filme estrelado por pessoas asiáticas num momento em que a emergência do um novo e letal vírus faz ressurgir a xenofobia contra orientais de forma generalizada no mundo.

O Oscar é bom.

O filme da diretora brasileira perde. Quem leva a estatueta é um documentário estadunidense produzido por um ex-presidente daquele país e sua esposa advogada. Mas espera, o casal presidencial em questão é formado por duas pessoas negras e o casal Obama é bom. Mas a política externa desse presidente foi igual a de todos os outros. Maldito imperialismo ianque. O Oscar é ruim.

O filme brasileiro tem uma série de problemas em sua narrativa e, além disso, a diretora vem de uma família de empreiteiros, enquanto o documentário estadunidense fala de precarização do trabalho sob a égide neoliberal. Além disso, nos agradecimentos os diretores citam o Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels e mandam ao vivo, para todo o mundo, a frase que conclama a união dos trabalhadores do mundo.

O Oscar é bom.

Ou é ruim? Preciso recapitular. Teve aquela parte em que o rapper branco com histórico de misoginia fez um show e aquele outro diretor branco – que faz filmes bons, mas cujos personagens são verdadeiras odes à masculinidade tóxica – deu uma cochilada e virou meme. O Oscar é bom.

O prêmio de Melhor Ator vai para um homem que interpreta um palhaço em surto psicótico que mata milionários. O Oscar é bom. Mas, espera, nesse filme ninguém entendeu muito bem a relação do personagem principal com as mulheres negras. Então o filme é ruim. Mas o ator vive em protestos e é vegano. Então o Coringa é ruim, mas o Joaquin Phoenix é bom. E DC é melhor que Marvel. Ou era o contrário.

Teve também aquela atriz que fez um protesto no tapete vermelho usando um vestido bordado com os nomes das mulheres que haviam sido ignoradas nas indicações. O Oscar é bom. Mas espera. Essa mulher é branca, cis, jovem, magra e padrão de beleza dominante. Se ela não acumulasse essas caraterísticas o protesto receberia a mesma cobertura midiática? O Oscar é ruim e a imprensa também.

Há algumas semanas minha TL está tomada por este debate: detestamos o Oscar porque ele é um prêmio da indústria capitalista que só reconhece seus próprios valores ou amamos o Oscar pela possibilidade de produções que escapam a esses valores serem reconhecidas fora de seus países, dado o alcance mundial da premiação? Detestamos o Oscar porque essa história de representatividade é papo de neoliberal e atrapalha a revolução? Se acreditamos na revolução, por que estamos gastando nosso precioso tempo falando de Oscar?

Não há resposta para a pergunta colocada neste título. Como evento midiático de alcance global, me parece impossível ignorarmos o Oscar, já que o cinema, na condição de mídia de massa, está presente em nosso cotidiano, ajudando a pautar discussões e ações políticas muito além do que os teóricos da primeira geração da Escola de Frankfurt ousaram imaginar. Se há quase um século se pensava em cinema quase como sinônimo de alienação e manipulação das massas, hoje é impossível desconsiderar que, mesmo no cinema produzido para grandes audiências, existem elementos importantes de crítica social e que podem extrapolar o simples ato de assistir algo.

É preciso parar de subestimar e desqualificar o público, seja ele de cinema, do Oscar, do BBB –  com base em nossos próprios gostos e desgostos relacionados a entretenimento – até porque ninguém aqui é um alecrim dourado que nasceu militando e jamais foi alienado. Primeiro porque o nome disso é elitismo. Segundo que envolve ignorar acontecimentos como o uso da maquiagem do Coringa em protestos ao redor do mundo ou mesmo a importância de denunciar internacionalmente o golpe parlamentar ocorrido no Brasil porque não gostamos da visão partidária nele contida ou do fato da diretora vir de uma família abastada (duas coisas que eu mesma não gosto).

Precisamos deixar de lado a visão monolítica. Porque a indústria cultural não é a rigor boa ou ruim. O que importa são os usos políticos que podemos fazer a partir dela, gostando ou não.

*Sobre a autora: Fhoutine Marie é paraense, feminista e faz a anarcocrítica da esquerda quinzenalmente neste espaço.