Estranhos Atratores

O caminho do Peabiru – Por Guilherme Marcondes

O CAMINHO DO PEABIRU, uma trilha intercontinental conectando a América do Sul muito antes da colonização.

Por Guilherme Marcondes – Projeto O Mármore e a Murta*

A criação de São Paulo está diretamente ligada ao Peabiru. A pequena população de portugueses que já habitava a região de São Vicente sabia pelos índios da existência do caminho que ia até “montanhas cobertas de gelo” dominadas por um “Rei Branco” cheio de ouro e prata (era Potosi, e o rei era Inca). Ao tomar conta disso, Martim Afonso de Sousa achou pertinente criar ali uma base para futuras explorações. Os jesuítas vieram na sequência, com planos bem diferentes para aquelas entradas. Os religiosos sonhavam em usar estas trilhas como eixo de expansão da catequese no interior da América do Sul e São Paulo era uma dessas primeiras missões.

Alguns historiadores acreditam que em certos trechos a trilha chegava a ser pavimentada com pedra e documentos de época mencionam um caminho de oito palmos de largura coberto por uma certa erva rasteira mágica que resistia até o fogo. Outros, como Sérgio Buarque de Holanda, sequer pensam que o Peabiru foi uma única via e sim um conjunto de instruções de movimentação pelo território. Independente do aspecto, o Caminho do Peabiru partia de (ou terminava em) Cusco, passava por Potosí, Assunção do Paraguai e na região do Guayrá (interior do Paraná) se dividia em três ramais que alçavam a costa Brasileira. O primeiro próximo a Florianópolis, o do meio em Cananéia e o mais ao norte descia a Serra do Mar até se São Vicente.

Pouco se sabe sobre essas rotas, já que a história oficial do Brasil até hoje é muito centrada nos feitos dos colonizadores. Segundo o mito, os Bandeirantes teriam desbravado o interior no país, até então selvagem e desconectado. Mas a verdade é que, muito antes dos europeus chegarem aqui, já existia uma comunicação entre as diversas culturas ameríndias e o principal duto dessa integração era o Peabiru. Nas últimas décadas tem havido um esforço coletivo para tentar compreender a perspectiva indígena e re-escrever a narrativa da ocupação do território americano. Nosso projeto se junta a esse coro.

O PEABIRU (parte 2): A “Trilha dos Tupiniquins”

Logo nos primeiros anos de colonização já havia um punhado de portugueses degredados, náufragos, ou ambos, vivendo entre o litoral e os “Campos de Piratininga” acima. No entanto, um obstáculo descomunal dificultava essa movimentação: a Serra do Mar. Os únicos que sabiam como transpor essa barreira, claro, eram os indígenas. Os Tupiniquim, povo Tupi-Guarani que vivia nessa região, se tornaram “aliados” dos portugueses e ensinaram o caminho. “Aliados” entre aspas porque sabemos que a relação era bem mais complicada e violenta, baseada e escravização e conversões forçadas, mas ambos eram inimigos dos Tupinambás.

João Ramalho, homem misterioso que chegou no Brasil por volta de 1515, logo se aproveitou da situação para estabelecer seu domínio no território paulista. Ramalho conseguiu se “amigar” com Bartira, filha de um dos caciques mais poderosos da região: Tibiriçá. A aliança entre eles foi o germe da criação de São Paulo. A dupla controlava praticamente toda a população da região de Piratininga. Na ocasião da fundação de São Vicente em 1532 por Martim Afonso de Sousa, foram João Ramalho e Tibiriçá que receberam o fidalgo. Eles guiaram o capitão serra acima por um caminho que ficou conhecido como “Trilha dos Tupiniquins”. Mais tarde, em 1553, a Coroa Portuguesa insatisfeita com a vulnerabilidade da colonos que viviam espalhados no planalto resolveu aglutinar essa população. João Ramalho foi mandado a fundar uma vila fortificada ao longo da “Trilha dos Tupiniquins” no ponto em que essa encontrava o planalto. A vila era Santo André da Borda do Campo e até hoje hoje não se sabe sua localização exata. Ao mesmo tempo os jesuítas, auxiliados pelo cacique Tibiriça, agruparam vários indígenas da região em uma nova aldeia chamada Piratininga. Essa nova aldeia ficava há algumas léguas pra frente na mesma “Trilha dos Tupiniquins”. Ao lado dessa povoação os jesuítas fundaram sua casa, onde hoje é o Patio do Colégio na Sé. Piratininga virou São Paulo e a “Trilha dos Tupiniquins” você já deve ter adivinhado o que era, né? O ramal local do Peabiru.

O PEABIRU (parte 3): Sabia que algumas das maiores ruas de São Paulo foram parte de um conjunto de caminhos indígenas que chegava até o Peru?

Como tudo que envolve o Peabiru, existem mais controvérsias do que consensos. Depois de ler vários artigos e livros conheci uma pesquisa de 1998, desenvolvida pelo arquiteto Daniel Issa da FAU-USP e orientado pelo professor Gustavo Neves da Rocha Filho: “O Peabiru: uma trilha indígena cruzando São Paulo”. Esta é a principal fonte para o mapa deste post, e claro, para nossa caminhada fotográfica.

Começando a partir da Sé, para o lado oeste existe um consenso (um dos poucos!) a respeito das ruas que foram originalmente parte do Peabiru. Estão preparados? R. José Bonifácio, cruza o Anhangabaú, R. Quirino de Andrade, Largo da Memória, R. Xavier de Toledo, Consolação, Bela Cintra, Rebouças, R. dos Pinheiros, R. Butantã e ali encontra o Rio Pinheiros na altura da ponte Eusebio Matoso. Antes da retificação esse era um ponto bem estreito do rio possível de ser atravessado. Depois do rio o caminho ainda é um pouco incerto. Alguns acreditam que seguia pela atual Rodovia Raposo Tavares, outros que subia em direção à Osasco rumo a Sorocaba.

A partir da Sé em direção leste fica a “Trilha dos Tupiniquins”. Aqui tudo é ainda MUITO controverso. Praticamente não li duas pesquisas que concordassem entre si. A própria pesquisa de 1998 está sendo revisada neste momento por Gustavo Neves da Rocha Filho. E isso, meus amigos, é a nossa história antiga sendo re-escrita em tempo real! De qualquer forma, esta é a hipótese que estamos seguindo: Desce a R. do Carmo, R. da Tabatinguera e nesse ponto antes da retificação do Tamanduateí, existia uma ponte. Dali segue a R. da Móoca e R. do Oratório. Essa última se torna Av. da Vila Ema, depois Av. do Oratório até atravessar o córrego de mesmo nome e mudar para Av. Sapopemba até a divisa com a cidade de Mauá. Depois desse ponto a pesquisa se encerra e entramos na região mais misteriosa da “Trilha dos Tupinquins”, nos arredores de onde teria sido a cidade perdida de Santo André da Borda do Campo. Só sabemos que os trilhos da CPTM devem seguir mais ou menos o seu trajeto até Paranapiacaba.

*PROJETO O MÁRMORE E A MURTA – De onde vem o nome do projeto? Essa frase é a metáfora central do “Sermão do Espírito Santo” do Padre Antônio Vieira onde ele expõe as ideias jesuíticas a respeito da alma do indígenas brasileiros. Em meados do século XVI, existia o problema dos “brasís” não reterem os ensinamentos da Igreja Católica. Segundo o padre, a catequese era como esculpir uma estátua. Os índios eram fáceis de convencer mas depois eram inconstantes e inconfiáveis (como a murta, um arbusto ornamental fácil de esculpir mas que logo volta a forma selvagem original), opostos a outros povos previamente conquistados pelos cristãos, mais duros, resolutos e desenvolvidos (como o mármore, duro para entalhar mas que depois retém a forma para sempre). A mesma frase também dá nome a um ensaio recente do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro que analisa o mesmo sermão pelo ponto de vista indígena.

Para Vieira, a murta era um símbolo negativo: caótico e imprevisível. Já o mármore, era sólido e apurado. Hoje em dia propomos outra leitura: A murta é viva e próspera enquanto mármore é um peso morto.