Estranhos Atratores

Manual Mágico de Guerrilha Urbana – Fábio Donaire

Por Fábio Donaire

Fotos: Beltane Fire festival Edinburgh (Divulgação)

‘Se você não tem preço, você não pode ser comprado. Se você não quiser, você não pode ser subornado. Se você não teme, você não pode ser controlado.’

Peter Grey – Bruxaria Apocalíptica

Estamos em uma nova ‘Idade das Trevas’ no país? Essa não é uma pergunta simples de ser respondida. Cada vez que abro uma rede social, sinto uma espécie de ‘déjà vu’. A censura cada vez maior, os ataques ao SESC Pompeia por conta da palestra de Judith Butler, as ameaças em tom de deboche de Sílvio Santos a Zé Celso dizendo que se o artista não ceder às pressões do empresário deixando que seu empreendimento descaracterize o projeto de Lina Bo Bardi ao oferecer os terrenos ao redor do Teatro Oficina para a construção de torres comerciais, ele vai ‘transferir a cracolândia’ para lá. Arte perseguida de todos os lados e até Caetano Veloso sofrendo ataques virtuais e mais um milhão de notícias do nosso nada democrático país abre um sério debate sobre os limites e extensões da ética.

Como falar de ética em um país em que as relações são estabelecidas por meio de interesses outros? Sendo mais direto, como querer ser ‘bonzinho’ em uma situação em que quem cria as regras do jogo não tem o menor senso de justiça social e compaixão? Como pensar essa questão sem cair na dualidade bem-mal, que nunca resolveu nada nem ajudou ninguém?

Se fôssemos escravos cativos sendo chicoteados por desrespeitar os donos da casa grande, como reagiríamos? Orando e pedindo a Deus saúde e felicidade para ‘nossos senhores’?

Essa é a moral de um seguimento do cristianismo que ignora a passagem bíblica que narra o momento em que Jesus expulsou os vendilhões do templo. E permaneceu ao lado de ladrões e prostitutas. Hoje são os vendilhões do templo que estão à frente do cristianismo e usando a religião para dar as cartas na disputa política do país.

Toda guerra é injusta. A guerra só é possível onde há desigualdade de condições e aquele que se considera mais forte investe contra o mais fraco. Mas como mostra a história, embora força seja sinônimo de aparato militar, outras forças invisíveis estão em ação. Em 1940, no Festival de Lammas, as bruxas britânicas fizeram um ritual que, diz a lenda, expulsou os nazistas das terras da Bretanha. Essa não foi a primeira vez que isso ocorreu. Em 1588 um grupo de bruxas teria expulsado a Armada Espanhola da ilha e o mesmo ocorreu em 1805, quando Napoleão desistiu de invadir a Inglaterra.

Do ponto de vista dos nazistas, da Armada Espanhola e de Napoleão, as bruxas estavam a serviço das forças do mal. Eis a relatividade da moral. E a necessidade de revermos a ideia que temos de ética.

Não acredito em uma nova ‘Idade das Trevas’, como o começo do artigo questiona, mas diante das transformações pelas quais passamos nos anos mais recentes, nossa condição de cativos se sobressai às inúmeras investidas do poder político que atentam contra a igualdade de condições e a justiça social que deveriam ser os pilares de uma sociedade republicana e democrática. Talvez a ‘Idade das Trevas’ nunca tenha deixado de existir e a cada dia nos damos mais conta de seus efeitos.

No momento em que estava imerso nessas questões me deparei com um livro perturbador chamado ‘Bruxaria Apocalíptica’. Nunca tinha ouvido falar da editora, Penumbra Livros, e diante do impacto da obra, fui em busca de mais títulos e dos responsáveis por essa publicação que certamente traz um outro olhar sobre o papel do ocultismo diante desses impasses políticos.

O livro traz frases como ‘A Guerra está sobre nós’ e ‘Aqueles sem nada a perder se atreverão a tudo’. Um manual mágico de guerrilha urbana.

Além da velha dicotomia ‘natureza x cultura’, superada há muito no pensamento filosófico contemporâneo, o livro chama a atenção por levar em consideração os aspectos culturais e sociais da construção do pensamento mágico que deixaria confusos muitos pretensos intelectuais que acham magia uma ‘superstição’.

Quem foi o responsável por isso?

Vinicius Ferreira é um carioca apaixonado pela magia. Engenheiro de telecomunicações, atuou na área até 2016, quando fundou uma editora. Ao ler ‘The Magical Revival’, de Kenneth Grant, surgiu a curiosidade em procurar uma possível edição em português. Para sua surpresa, a única edição lançada no Brasil, a despeito de sua péssima tradução, estava a venda por mais de R$700,00. Junto com Lívia Andrade, sua esposa e sócia, entrou em contato com a viúva de Grant e refez a tradução, que foi lançada no mesmo ano, já com um acabamento impecável, a marca registrada de seu trabalho, e que estreou sua editora, a Penumbra Livros.

Os livros, todos em capa dura, surpreendem pela qualidade no momento em que a crise econômica abala as estruturas das editoras já consolidadas no país. Mas surpreende não só pela preocupação com a apresentação, mas pela escolha dos títulos, grandes clássicos do ocultismo ocidental contemporâneo ainda inacessíveis ao público brasileiro que não tem domínio da língua inglesa.

‘O Renascer da Magia’ é bastante simbólico por ser o primeiro título. A tradução evidencia um enorme respeito à edição original, sobretudo às inúmeras ilustrações e ao texto original.

O segundo livro, ‘Kalciferum – Demônios, Bruxas e Vagantes’, ficção escrita por Andrei Fernandes, seguiu a qualidade do primeiro.

Outros livros vieram. ‘Liber Null & Psiconauta’, de Peter J. Carroll, e ‘Principia Discordia’, de Greg Hill e Kerry Thornley. Sobre este último, Lívia diz que ‘várias pessoas achavam que esse livro não existia. Era como o Necronomicon. As pessoas ficavam surpresas quando viam o livro’.

Um grande problema no mercado brasileiro é que os livros sobre magia ainda seguem a moda ‘new age’ e sua superficialidade. Daí surgiu a ideia de lançar livros de bruxaria tradicional, como ‘A arte dos indomados’, de Nicholaj de Mattos Frisvold, ricamente ilustrado por Akemy Hayashi, e ‘Bruxaria apocalíptica’, de Peter Grey. Publicar uma obra de Frisvold, psicólogo e antropólogo norueguês radicado no Brasil desde 2003, foi outra boa escolha. Além da questão acadêmica, o autor pratica a bruxaria tradicional e dota seu texto de alma ao incluir nele as próprias experiências.

Foram lançados pela Penumbra oito livros até o momento. Vinícius ressalta que está interessado em livros importantes que devem ser lidos e que merecem ser publicados, independente de quando foi lançada a primeira edição na língua original. Lívia diz que está em busca de livros importantes que passam desapercebidos pelas outras editoras, livros que outras pessoas não teriam ‘coragem de publicar’.

Outro diferencial da dupla é o interesse em autores nacionais. Existe uma comunidade caoísta bastante ativa no Brasil, por exemplo. Segundo o ‘Google Trends’, o Brasil é o primeiro país do mundo no que se refere à busca de livros sobre o tema. A busca de autores brasileiros que tenham trabalhos de qualidade sobre esse e outros assuntos ligados ao ocultismo é um dos focos de Lívia e Vinícius.

Há pouco a Penumbra lançou ‘O Livro de Baphomet’, de Julian Vayne e Nikki Wyrd, que narra as diversas interpretações em torno dessa figura misteriosa. Mal posso esperar para ler.

Espero que a Penumbra faça muito sucesso. Os livros merecem lugar de destaque em nossas estantes, principalmente no momento em que vivemos. Um momento em que a espiritualidade, como quer que seja configurada, não pode ficar alheia aos acontecimentos políticos. As religiões tradicionais têm sido habilmente usadas por interesses escusos. Que outras formas de espiritualidade sejam mais difundidas entre nós. Amém.