Estranhos Atratores

Estranhos Atratores e a ocupação Povo sem medo em São Bernardo – Marcelo Mendez

Por Marcelo Mendez

Fotos: Rodrigo Pinto

Aqui em Estranhos Atratores, vamos sim falar da Ocupação Povo Sem Medo, do MTST em São Bernardo.

Essa história será contada a partir do sorriso pleno de Dona Luzia, 58 anos, coordenadora da cozinha comunitária da ocupação do MTST Povo Sem Medo. Passará pelo brilho nos olhos de Carlos, 60 anos de idade, outros tantos de lutas. Estará ao lado de Daniel, 37 anos, em sua subida na barra, pelo terreno íngreme da ocupação, com um galão de água em uma mão e outras tantas tábuas, na outra.

A matéria a seguir falará das vidas que estão dentro da luta por moradia porque, para além de questões meramente Guttenberguianas, nos interessa as vidas todas.

Se não for por elas, a gente não chupa nem um picolé…

No caminho dos que lutam

O dia era quente em Santo André.

No meio de um fim de inverno, o sol resolveu dar as caras com força no abc Paulista. Em frente à estação de Santo André, eu caçava uma fresta de alguma sombra para esperar por Rodrigo. O vai vem das pessoas na tarde escaldante de uma sexta feira é vertiginoso. Passos apressados, conversas no celular, correria para o trem, ônibus lotados e abafados.

Observava a todo esse cenário, tendo como trilha sonora uma música vinda de uma barraca de frutas, cujo verso dizia “Na sua boca eu viro fruta, chupa que é de uva”. Quando já me via entretido com os sons do povo, Rodrigo chega, buzina e então, rumamos para a ocupação. Na empolgação do amigo com a pauta, vive o jornalismo, como o Jornalismo tem que ser. Conversamos…

Em nossa prosa, uma ocupação de proporções inéditas no Brasil. Cerca de seis mil pessoas ocupam uma área de 70 mil metros quadrados desde a madrugada do dia 2 de setembro, em São Bernardo. O espaço fica em frente à fábrica da Scania, em uma parte da cidade ficam os bairros do Jardim Planalto, Assunção e um espaço icônico de São Bernardo, a Vila Operária.

A Vila é uma área incrustada no meio desses bairros que também foi ocupada no começo dos anos 1980.

Depois de muita luta os moradores dela, finalmente conseguiram suas escrituras em 2011. Falávamos de tudo isso enquanto estacionávamos o carro, há uns três quilômetros da ocupação, no único lugar possível. A policia havia fechados os acessos mais próximos. Começava ali nossa peregrinação para a pauta, rumo ao Brasil, que os outros “Brasis” não querem saber.

Sobre Procissões e batalhas; Carlos, Luzia e Daniel

Carro parado em frente ao Cenforpe, no bairro do Jardim Planalto, caminhada iniciada por nós. Nos três quilômetros que nos separavam do local onde está a ocupação Povo Sem Medo, acontecia uma procissão de pessoas, de famílias, carregando madeiras, galões de água e outras necessidades.

“No começo, nós podíamos chegar com o carro, dentro da ocupação para descarregar os mantimentos, as doações. Agora, a policia não deixa nada passar da barreira que vocês viram, ali, uns 200 metros daqui. Fica mais complicado, mas não assusta a gente” – Conta-nos Sandra Regina, uma das coordenadoras da ocupação.

Já dentro da ocupação, logo após falar com Sandra, vi Daniel, torneiro mecânico, atualmente, desempregado.

Aos 37 anos de uma vida de todas as lutas que se possa imaginar, o moço de rosto branco, queimado por um vermelho de um sol cruel de quase 40 graus, carregava umas ripas de madeira para arrumar seu abrigo e um galão de água para a cozinha do local. Parou na porta da cozinha e falamos um pouco.

“A minha vida é como a vida de quase todos os Brasileiros. Eu tinha um trabalho, um salário que dava para as coisas básicas, nem muito luxo, mas eu cheguei num ponto que nem quero luxo, sabe? Daí, primeiro me tomaram o emprego, trabalhava numa empresa, o cara de uma hora pra outra, sumiu, levou os tornos, tudo. Não pagou nem eu, nem os outros, sumiu. Aí, sem emprego, sem nada, como eu ia pagar aluguel?”

Me pediu uma licença, levou a água até a cozinha, se enxugou do suor que tomava conta de seu corpo franzino, porem forte. Voltou a falar:

“Tentei arrumar emprego, tentei pedir ajuda, mas eu nem posso dizer que as pessoas não querem me ajudar. Elas não tão tendo, como. Daí então vim para o movimento. Estou nessa luta por moradia há cinco anos”

Nos despedimos e fui então saber do destino de seu galão de água, que já se encontrava na metade. Carlos, o ajudante o ergueu e despejou em uma das panelas imensas em que Luzia, 58 anos de idade, cozinha parte dos 80 quilos de arroz diários, que são servidos na ocupação.

Uma mulher bonita, de pele bronzeada, sorriso que só pode ser possível no rosto dos fortes. Deu risada de mim, pingando de suor, embaixo da lona que cobre a cozinha e falou um pouco dela, da luta, da vida:

“Olha, eu conheci o movimento há cinco anos. Eu hoje consigo pagar meu aluguel, que me custa R$ 1200,00 e ter o meu trabalho. Mas quero seguir ajudando quem não tem nada e aqui, muita gente não tem nada. Eu faço questão de sair de la, de Santo André, vir aqui trabalhar como voluntária e ajudar. Isso me faz feliz”

A seu lado, concordando com tudo de Luzia, O Seu Carlos, 60 anos de idade, de cabelos brancos, gestos refinados e rosto de bluesman, se aproximou de mim. Perguntei pra ele de sonhos, de vida, da truculência que o mundo reserva a eles e em instante algum, vi em Carlos nada de beligerante.

“Sabe moço, eu tento entender esse povo que diz que odeia. No fundo, isso é tristeza. Eles devem estar tristes. Veja só, eu tenho uns 40 anos de luta, sempre me vejo tendo que lutar por alguma coisa que deveria ser minha pro direito e eu não fico triste, é o contrario. Eu me emociono, sabe? Olha pra essa ocupação, que coisa mais linda; Um dia a gente vai vencer. Já começamos…”

Terminei a entrevista e instintivamente abracei Seu Carlos, beijei o seu rosto e ele me fez um afago, daqueles de pai, mesmo. Saí da cozinha, olhei a ocupação, o vai e vem de pessoas, as quantas vidas estão ali querendo o que já deveria ser delas por direito.

No Brasil, o déficit habitacional chegou a 90 mil famílias. Quando cheguei na ocupação, pensava em como resolver isso, não vendo muita solução. Após falar com Carlos, Luzia e Daniel, depois de ver a força de suas convicções, passo a ter alguma esperança.

Obrigado, Caros.